QUERIA SER MARINHEIRO CORRER MUNDO
queria ser marinheiro correr mundo com as mãos abertas ao rumo das aves costeiras a boca magoando-se na visão das viagens levaria na bagagem a sonolenta canção dos ventos e a infindável espera do país assustado pelas águas debruçou-se para o outro lado do espelho onde o corpo se torna aéreo até aos ossos a noite devolveu-lhe outro corpo vogando ao abandono dum secreto regresso... depois guardou a paixão de longínquos dias no saco de lona e do fundo nostálgico do espelho surgiram os súbitos olhos do mar cresceram-lhe búzios nas pálpebras algas finas moviam-se medusas luminosas ao alcance da fala e o peito era o extenso are ai onde as lendas e as crónicas tinham esquecido enigmáticos esqueletos insectos e preciosos metais um fio de sémen atava o coração devassado pela salsugem o corpo separava-se da milenar sombra imobilizava-se no sono antigo da terra descia ao esquecimento de tudo... navegava no rumor das águas oxidadas agarrava-se à raiz das espadas ia de mastro em mastro perscrutando a insónia abrindo ácidos lumes pelo rosto incerto dalgum mar [in Salsugem 1982 pag. 298 de O Medo]
OFÍCIO DE AMAR
já não necessito de ti tenho a companhia nocturna dos animais e a peste tenho o grão doente das cidades erguidas no princípio doutras galáxias, e o remorso um dia pressenti a música estelar das pedras, abandonei-me ao silêncio é lentíssimo este amor progredindo com o bater do coração não, não preciso mais de mim possuo a doença dos espaços incomensuráveis e os secretos poços dos nómadas ascendo ao conhecimento pleno do meu deserto deixei de estar disponível, perdoa-me se cultivo regularmente a saudade de meu próprio corpo [in Sete dos Ofícios (1980), pag.186 de O Medo]
ESTILHAÇOS / PEDRO CASQUEIRO
pelo som asfaltado do vento vêm sabe-se lá de que periferias atravessam pontes e aquedutos com o cabelo brilhante caveiras de níquel gajas nuas coladas aos esfarrapados e escuros blusões azuis dragões da noite motorizada estacionam nas bombas de gasolina onde o tédio e a manhã chegaram mais cedo no olhar triste de um puto sem idade bebem incendeiam prosseguem depois num alarido de corvos pelo túnel do dia somem-se velozes deixando para trás destroços de fogo e de cromados perdem-se na primeira cidade que encontram afiam os nervos com o sexo contra um flipper e ao sórdido conforto da casa dos pais sabem que não regressarão nunca mais [in A Secreta Vida das Imagens III (84/85): pag. 449 de O Medo]
DIA DA CRIAÇÃO DA NOITE POR CARLOS NOGUEIRA
estavam os homens as águas os animais e as terras cansados de luz e de não haver noite levantei as mãos fiz rodar a terra para que se retirasse o sol enrolei os dedos nas últimas fulgurações teci com os cintilantes fios a misteriosa linguagem dos astros depois fui pela escura abóbada estendi a fantástica tapeçaria para que lá em baixo ninguém perdesse o seu caminho e nela pudesse adivinhar o doloroso humano destino a noite ficou assim tão habitada quanto a terra os homens podem hoje sonhar com aquilo que mal entendem e quando o medo atribuiu nomes àquele luzeiro dei por terminada a obra cortei os fios como se cortasse um pedaço de mim fui para outro hemisfério adormecer o dia construir a pirâmide o quadrado o círculo a linha recta as cores do mundo e dar vida a outras incandescentes criaturas [in A Secreta Vida das Imagens III (84/85): pag. 439 de O Medo]
ÀS VEZES... QUANDO ACORDAVA
às vezes... quando acordava era porque tínhamos chegado ficava a bordo encostado às amuradas horas a fio espiava a cidade as colinas inclinando-se para a noite lodosa do rio e o balouçar do barco enchia-me de melancolia a noite trazia-me aragens com cheiro a corpos suados cantares e danças em redor de fogos que eu não sabia o ruído dos becos a luz fosca dum bar se descesse a terra encontrar-te-ia... tinha a certeza para o voo frenético do sexo e num suspiro talvez alagássemos os umbrais da noite mas ficava preso ao navio... hipnotizado com o coração em desordem os dedos explorando nervosos as ranhuras da madeira os pregos ferrugentos as cordas as luzes do cais revelavam-me corpos fugidios penumbras donde se escapavam ditos obscenos gemidos agudos sibilantes risos que despertavam em mim a vontade sempre urgente de partir [in Salsugem (1982): pag. 300 de O Medo]
NO CENTRO DA CIDADE, UM GRITO
E no centro da cidade, um grito. Nele morrerei, escrevendo o que a vida me deixar. E sei que cada palavra escrita é um dardo envenenado, tem a dimensão de um túmulo, e todos os teus gestos são uma sinalização em direcção à morte - embora seja sempre absurdo morrer. Mas hoje, ainda longe daquele grito, sento-me na fímbria do mar. Medito no meu regresso. Possuo para sempre tudo o que perdi. E uma abelha pousa no azul do lírio, e no cardo que sobreviveu à geada. Penso